sexta-feira, 26 de setembro de 2025

O ciclo injusto da vida

Rodrigo era um cara engraçado. Daqueles que não precisam se esforçar muito pra arrancar riso de quem estivesse perto. Gostava de cerveja, churrasco e do Vasco da Gama, mesmo que isso às vezes fosse mais sofrimento do que alegria.

Pra mim, ele foi mais primo ou irmão do que tio. A gente se aproximou de verdade quando ele passou um tempo aqui em casa. Foram dias de videogame, piadas e disputas que ele nunca me deixava esquecer, sempre jogava na minha cara que eu perdia dele. Ele ganhou só uma. Mas foi o suficiente para me apelidar de "pato" pra sempre.

Rodrigo tinha um jeito especial com os animais. Onde ele passava, parecia que os cachorros reconheciam nele um parceiro. Bastava um assobio e lá vinham eles, abanando o rabo, como se corressem pra cumprimentar um velho amigo. Ele ria, fazia carinho em todos, e ficava claro que os animais entendiam algo que a gente também sabia: ele tinha uma pureza rara.

No fim de 2019, a visita dele foi diferente. Rodrigo apareceu em casa trazendo uma notícia que ninguém queria ouvir: estava com câncer na língua. Minha mãe me pediu pra ajudar nas idas e vindas ao hospital, e foi assim que a gente conviveu ainda mais de perto.

Foram meses de longas trajetórias entre sua casa ao hospital. Eu dirigia, ele olhava pela janela. Às vezes conversávamos, outras vezes não havia o que dizer. Entre uma quimioterapia e outra, entre uma radioterapia e outra, dava pra ver a luta no olhar dele.

Até que em meados de 2020 veio a notícia que parecia milagre: Rodrigo estava curado. Na festa do meu aniversário daquele ano, ele apareceu de surpresa. Magro, ainda com marcas da batalha, mas sorridente. Foi uma festa como poucas, bebemos, rimos e celebramos como se a vida tivesse vencido de vez.

Mas a alegria durou pouco. Meses depois, o câncer voltou, agora na laringe. E cada semana levava um pedaço dele embora. O tratamento já não respondia. A gente via o corpo definhar, a voz sumir, a esperança escorrer pelos dias.

Vi coisas que nunca vou esquecer. Como o dia em que o levei ao cartório pra passar seus bens para o nome da esposa. Ele queria garantir que ela tivesse algo quando ele partisse. Era como assinar a própria despedida em vida.

No domingo, 28 de março de 2021, acordei com uma mensagem da esposa dele. Rodrigo estava muito mal. Corri pra buscá-lo. Quase tive que carregá-lo até o carro. Ele vomitava sangue, mal conseguia ficar de pé. Poucas horas depois, a notícia que eu já temia: aos 40 anos, Rodrigo finalmente pôde descansar em paz.

Rodrigo foi embora cedo demais. A vida o arrancou de nós antes da hora, como quem apaga uma vela que ainda tinha chama pra queimar. O ciclo foi injusto, e não existe explicação capaz de preencher esse vazio.

Mas quando penso nele, não é o hospital que me vem à mente. É o riso fácil, é a cerveja gelada na mão, é o Vasco que tanto fazia sofrer mas nunca o abandonava. É ele me chamando de “pato” só porque venceu uma única partida de videogame. É o assobio leve na rua, que fazia os cachorros correrem como se reconhecessem ali um coração puro demais pra este mundo.

Rodrigo lutou até o fim. Lutou como poucos teriam coragem, e mesmo quando já não havia vitória possível, permaneceu inteiro. Ele partiu sem dor, sem doença, mas deixou em nós uma saudade que não se cura.

Escrevo isso no dia que completo mais um ciclo de vida. Cinco anos depois daquele dia que celebramos juntos o renascimento. O ciclo da vida foi injusto. Mas dentro da injustiça ficou uma certeza: a lembrança de Rodrigo é maior que a morte. Enquanto houver memória, ele continua vivo. Enquanto houver saudade, ele continua eterno.

E sempre que o Vasco da Gama estiver jogando - e provavelmente perdendo - eu vou me lembrar da voz dele justificando que o próximo jogo será melhor. Guarde um controle pra mim aí no céu Rodrigo. Estou treinando para a minha revanche, pato.